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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Anjos libertários, bardos do amor sem limites

Fatima Dannemann

Palco da Broadway, 1997. Nada pirotécnico em cena. No palco, um bando de atores cantam "como você pode medir um ano em segundos/ em beijos/ em xícaras de cafézinho"... Assim terminava "Rent", premiada com os principais "Tony" (uma espécie de Oscar para peças de teatro) daquele ano, concorrendo com "darlings" do público, especialmente de turistas como "Miss Saigon", "Fantasma da Ópera" e o belíssimo "A Bela e a Fera". Pois é. No Tony daquele ano deu "Rent" na cabeça. Uma ópera-rock, musical, seja lá que nome queiram dar ao espetáculo, sem helicopteros no palco, sem efeitos especiais, sem falar de meninas boazinhas que vêem beleza em monstros-feios ou de compositores deformados que se apaixonam pelas sopranos. Mas ainda assim, impregnada dos mesmos ingredientes: amores, angústias, dores, pequenas alegrias. "Rent" passou batido de muita gente. Claro, no palco muito pouco de deslumbre e muito da realidade de pessoas que moram perto de nós, mas que ignoramos: drogados, homossexuais, soropositivos.
Gente que ama, sente, sofre, vibra, ri e chora, mas que o preconceito as vezes não deixa que sejam notados como seres humanos. Gente que, para transmutar tudo o que sente, busca na arte o apoio que seus semelhantes lhe negam e vez ou outra surgem bardos libertários a gritar o amor e a vida com letras maiúsculas. Como Renato Russo, Cazuza e tantos outros, que pediram "apenas um segundo para aprender a amar" e que foram levados cedo para outros planos de existência. Como outros anjos, um século antes, foram vencidos pelo fantasma da vez, a tuberculose. Castro Alves, por exemplo. E em outras épocas outros bardos ou anjos que desafiaram os limites, transpuseram barreiras, romperam convenções apenas para dar seu grito pela vida. A vida a qual, poetas ou não poetas, artistas ou não artistas, os donos da verdade ou aqueles que apenas a buscam, sejam lá quem for, todos têm direito.
E no palco em Rent, os atores cantavam a belíssima canção gravada em disco por Steve Wonder "how do you measure/ measure a year?" (como você mede/mede um ano) encerrando a história em que gente como nós - apenas condenadas ao submundo pelo preconceito da sociedade tradicional - contava seus dramas, angústias e não deixava de acreditar no futuro. Artistas... Atores, poetas, músicos... Gente considerada "maldita" ou "desocupada" por quem acha que trabalhar significa apenas bater um cartão de ponto, cumprir jornada de oito horas e ter um contra-cheque no fim do mês, quando, sabemos, que não é bem assim. Bardos de um amor sem limite. E nos séculos passados quantos romperam convenções? E nos séculos passados quantos desafiaram reis e juízes? Quantos escaparam da tuberculose ou mesmo da sífiles mas morreram da overdose da ignorância dos poderosos?
E Cazuza cantava "você tem exatamente um segundo para aprender a me amar". Quase uma profecia. Para quem nunca teve limites, a vida na terra acaba cedo. Mas, em outros planos ela é eterna. Como são eternos os versos de Castro Alves e tantos outros poetas que vieram antes, mas que desafiaram as convenções, as idéias e deixaram um legado para o mundo "Rent" talvez tenha passado batido da grande massa de turistas que visita Nova York todos os anos por lembrar ao mundo uma realidade que incomoda e muito, de gente a que resta apenas a arte para transmutar as angústias em algo bonito. Como outros tantos fizeram. Castro Alves, por exemplo, em seu leito de morte, reunindo forças para escrever o belíssimo conjunto de sonetos "Anjos da meia-noite", lembrando todas as mulheres de sua vida. Oito sombras ao todo. A última delas, a inevitável, aquela a quem ninguem escapa, a morte. Nem os poderosos. E não importa como se mede um ano, se em segundos, minutos, copos de cafezinho. Cazuza, Renato Russo, e muitos outros que partiram cedo desta vida, preferiram medir a vida em algo muito além de todas as medidas: a poesia.

(dedico esse texto a minha querida amiga Stela Trindade que eu não sei por onde anda e gostaria de ter noticias)

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