PASQUALE CIPRO NETO JÁ LÁ SE VÃO quase 17 anos que Caetano Veloso e Gilberto Gil comemoraram, com um belíssimo disco ("Tropicália 2"), os 25 anos da Tropicália, movimento artístico integrado por eles e por gente do calibre de Rogério Duprat, Torquato Neto, Os Mutantes, José Carlos Capinan e o grande Tom Zé. O CD "Tropicália 2" é aberto pela antológica "Haiti", melodia de Caetano Veloso e Gilberto Gil, com letra (só) de Caetano Veloso, em cujos versos, quase premonitórios, há esta passagem: "Pense no Haiti / Reze pelo Haiti". A sequência é bem conhecida: "O Haiti é aqui / O Haiti não é aqui". Em tempos de multidisciplinaridade e interdisciplinaridade, sugeridas pelo MEC nos seus "Parâmetros Curriculares Nacionais", e - lamentavelmente - em tempos de mais um episódio da interminável agonia haitiana, convém tentar entender o que diz a pungente, real e atual letra de Caetano. Transcrevo um trecho do que escrevi neste espaço há algum tempo: "O Haiti foi a primeira nação negra das Américas e chegou a ter importante papel no cenário econômico internacional, como grande produtor de açúcar. Depois de idas e vindas em embates com a metrópole (França), da independência, de drásticas mudanças na cadeia produtiva, da invasão (no século 20) por fuzileiros navais americanos, o país chegou à sanguinária ditadura Doc (Papa Doc e Baby Doc) e à condição de mais pobre país das Américas". Quando Caetano diz "O Haiti é aqui / O Haiti não é aqui", refere-se ao fato de que, em muita coisa, o Brasil e o Haiti são (des)semelhantes. Refere-se também ao fato de que, pelas semelhanças (histórica, étnica, econômica, sobretudo quando se trata de alguns estratos da sociedade brasileira, do resultado da monocultura do açúcar etc.), certa parcela do Brasil pode, sim, ter o mesmo destino do Haiti (se é que já não o tinha ou tem), daí o pedido para que pensemos no Haiti e rezemos por ele, o que, ao fim e ao cabo, implica pedir que se pense nesse estrato do Brasil e se reze por ele. Alguns leitores e amigos às vezes me dizem que levanto demais a bola de Caetano Veloso. Levanto pouco, creio - muito menos do que ele merece. Não lhe parece digno de louvor que um artista da estatura dele leve à música popular e, consequentemente, a uma significativa parcela da população temas tão insólitos quão interessantes como o da relação histórica do Brasil com o Haiti? Aproveito para lembrar que, além de ensinar história, a letra de Caetano ensina português formal, culto. Em pelo menos duas passagens há bons exemplos de simetria no uso dos tempos verbais. Um deles é este: "E na TV se você vir um deputado / Em pânico mal dissimulado / Diante de qualquer, mas qualquer mesmo / Qualquer qualquer / Plano de educação que pareça fácil / Que pareça fácil e rápido / E vá representar uma ameaça de democratização / Do ensino de primeiro grau...". As formas "pareça" e "vá", que são paralelas, são do presente do subjuntivo, modalidade adequada à intenção do autor de deixar claro que os atributos expressos pelas passagens integradas pelas formas verbais destacadas se referem a algo hipotético (no caso, o tal plano de educação, qualquer que seja esse plano). Em outra passagem da letra, encontram-se estes versos: "E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital / E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto / E nenhum no marginal...". As formas verbais "defender" e "disser", que também são paralelas, estão no futuro do subjuntivo, tempo imposto pela conjunção condicional "se", explícita em "E se esse mesmo deputado defender..." e implícita em "E (se) o venerável cardeal disser...". Pense no Haiti, reze pelo Haiti. O Haiti é aqui, o Haiti não é... É isso. inculta@uol.com.br Haiti. (Caetano Veloso e Gilberto Gil, letra de Caetano Veloso) Quando você for convidado pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos De ladrões mulatos E outros quase brancos Tratados como pretos Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados E não importa se olhos do mundo inteiro possam estar por um momento voltados para o largo Onde os escravos eram castigados E hoje um batuque, um batuque com a pureza de meninos uniformizados De escola secundária em dia de parada E a grandeza épica de um povo em formação Nos atrai, nos deslumbra e estimula Não importa nada Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico Nem o disco de Paul Simon Ninguém Ninguém é cidadão Se você for ver a festa do Pelô E se você não for Pense no Haiti Reze pelo Haiti O Haiti é aqui O Haiti não é aqui E na TV se você vir um deputado em pânico Mal dissimulado Diante de qualquer, mas qualquer mesmo Qualquer qualquer Plano de educação Que pareça fácil Que pareça fácil e rápido E vá representar uma ameaça de democratização do ensino de primeiro grau E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto E nenhum no marginal E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco brilhante de lixo do Leblon E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina 111 presos indefesos Mas presos são quase todos pretos Ou quase pretos Ou quase brancos quase pretos de tão pobres E pobres são como podres E todos sabem como se tratam os pretos E quando você for dar uma volta no Caribe E quando for trepar sem camisinha E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba Pense no Haiti Reze pelo Haiti O Haiti é aqui O Haiti não é aqui Folha de São Paulo de 14/01/2010 |
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